Quando os projetos de Arcabouço Fiscal e de Reforma Tributária foram apresentados, houve um certo otimismo no chamado Mercado e entre os formadores de opinião. Não é que as propostas fossem boas. É que qualquer sinal de racionalidade já era um alívio.

Também havia torcida. Muita torcida. Mas as análises sérias já mostravam um cenário preocupante. Era preocupante antes mesmo dos projetos começarem a ser desfigurados para acomodar exceções tributárias e o financiamento do novo PAC (que aliás apresenta os mesmos persistentes erros da versão anterior que nos levaram à crise de 2014 e da qual ainda não saímos totalmente).

Como bem observou Amilton Aquino, nos primeiros sete meses de governo Lula contou com a ajuda casual de fatores alheios a qualquer ação dessa administração:  safra recorde tanto para aliviar a inflação quanto para impulsionar a balança comercial;  melhora do ambiente econômico internacional; baixa no preço do barril de petróleo. E por fim, o combate consistente do BC à inflação que cedeu e permitiu o início do ciclo de queda da Selic.

O otimismo moderado que assistimos vem da soma desses fatores à promessa de responsabilidade fiscal e simplificação tributária das propostas apresentadas. Mas o efeito está passando.

Como lembra matéria do Valor Econômico, “as tentativas do governo para impulsionar a indústria, um setor que encolheu de 48% da produção econômica em 1985 para menos de 24% hoje, são as que vêm ganhando mais destaque. No entanto, em vez de enfrentar as raízes do declínio industrial – os baixos níveis de educação, a logística cara e a burocracia pesada – Brasilia tem se concentrado em distribuir benefícios”. Aos amigos, é bom lembrar.

A piora do déficit projetado para 2023 e 2024 cresce diariamente. Ninguém mais acredita que será zerado em 2 ou 3 anos, como previa Haddad. Já se fala claramente que o governo terá que rever a nova regra fiscal para financiar o “espetáculo de crescimento” que deveria brotar do novo PAC. E realmente vai brotar, exatamente como no PAC1, do governo Lula II, e com as mesmas consequências nefastas que nos atingem depois de um breve período de crescimento. Não há motivo algum para repetir uma fórmula que criou a maior crise econômica da história brasileira e esperar que desta vez chegue a um resultado diferente. Na verdade, isso é a definição de estupidez frequentemente atribuída a Albert Einstein.

Estes alertas ganham ainda mais dramaticidade diante do artigo abaixo publicado na Folha de São Paulo por de Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper e organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

É mais um da série “eu avisei”.

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GOVERNO DO PT FAZ CONTABILIDADE CRIATIVA OUTRA VEZ?

No passado, a manipulação da contabilidade pública já nos levou a crise fiscal

Nos governos anteriores do PT, esteve em moda a “contabilidade criativa”, práticas contábeis inadequadas para que o governo pudesse aumentar o gasto e a dívida sem que isso se refletisse nas estatísticas de déficit primário ou de dívida líquida.

Por Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper e organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Na Folha de São Paulo.

As “técnicas” utilizadas foram várias. As despesas com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) não eram consideradas para fins de cumprimento da meta fiscal. Receitas eram antecipadas (vendas de royalty de Itaipu a banco público) ou despesas postergadas (pedaladas fiscais), de modo a empurrar o déficit para o futuro. Títulos públicos eram emprestados ao BNDES para que este gastasse por fora do Orçamento: a dívida líquida não crescia porque se registrava aumento da dívida bruta (os títulos emitidos) simultaneamente a um crédito do Tesouro junto ao BNDES, mantendo inalterada a dívida líquida. Vender direito de exploração de petróleo à Petrobras (a chamada cessão onerosa) também rendeu aumento do resultado primário.

A tentação parece estar de volta. Nesta semana, o governo enviou ao Congresso mensagem propondo excluir do cálculo do déficit das empresas estatais o valor de R$ 5 bilhões, a serem gastos no novo PAC. Não se deu ao trabalho de explicar em que o dinheiro seria gasto, alegando apenas a “importância para o desenvolvimento econômico e social do país”.

A PEC da Transição (EC 126/22) também introduziu distorção contábil quando determinou que a transferência de saldo de recursos do PIS/Pasep para o Tesouro deveria ser registrada como receita primária, quando o correto, de acordo com o “Manual de Estatísticas Fiscais do Banco Central”, seria tratar como um caso de ajuste patrimonial, diminuindo a dívida sem afetar a receita. O Tesouro vem computando essa receita (R$ 26 bilhões) como primária. Por isso, a estimativa oficial para o déficit de 2023, atualmente em R$ 145 bilhões é, na verdade, de R$ 171 bilhões. O segundo relatório bimestral de receitas e despesas reconhece este tratamento atípico.

Na última quinta-feira, esta Folha noticiou que o governo pretende classificar precatórios como dívida, de modo que o seu pagamento seria uma despesa financeira, não mais primária. Como tal, não afetariam o cálculo do resultado primário. Se confirmada, essa medida representará significativa manipulação contábil, que nem os artífices das criatividades do passado ousaram adotar.

O imbróglio começou quando o governo Bolsonaro, também lançando mão de criatividade, propôs, e o Congresso aprovou, a PEC dos Precatórios, para deixar de pagar parte dessa despesa e, com isso, gastar com outras despesas. O valor não pago se acumulará até 2027, sendo corrigido pela taxa Selic, crescendo como bola de neve.

O governo quer pagar o saldo acumulado até agora e voltar a pagar regularmente os precatórios inscritos anualmente no Orçamento, mas não quer que isso piore o resultado primário. Daí vem a proposta de tirar da conta do déficit primário as despesas com precatórios (ou parte delas, a depender de como será feita a proposta).

Isso é uma distorção de princípios contábeis básicos. Pagamento de precatório é despesa primária. Como bem argumentou Mailson da Nóbrega em artigo no jornal Valor de 25/5/23, precatórios surgem, por exemplo, quando o governo paga menos do que deveria a um beneficiário do INSS, a um fornecedor do governo ou a um servidor público. A parte que se sentiu prejudicada vai à Justiça, que, se lhe der ganho de causa, obriga o governo a pagar a diferença. O gasto original foi primário, a diferença, paga via precatório, também é despesa primária.

O procedimento correto seria comunicar à sociedade que as atuais metas de resultado primário foram fixadas em um contexto em que não se previa o pagamento dos precatórios. Contudo, o governo considera mais correto acabar com a moratória unilateral e honrar integralmente a despesa contratada.

Por isso, a meta de déficit primário terá que ser alterada. Haverá também a necessidade de tirar o pagamento dos precatórios do limite de gastos do arcabouço fiscal, recalibrando os limites de despesa para baixo. Ganha-se em transparência e credibilidade.

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P.S. ainda necessário:

Isso não é uma defesa do Governo Bolsonaro, que foi uma tragédia em áreas fundamentais como Saúde, Meio Ambiente, Educação, Pesquisa, Cultura etc. Foi uma tragédia também porque deu voz e potência a uma parcela da população brasileira que, como o próprio Bolsonaro e sua prole, se ressente da cultura & civilização, conceitos que constituem a espinha dorsal das maiores conquistas da humanidade em termos de liberdade, direitos sociais e qualidade de vida. São pessoas que nem entendem o que escrevo aqui. Logo, o que faço nos artigos que publico e nos debates de que participo é apenas a defesa da racionalidade econômica, da democracia, da liberdade de expressão e de imprensa. Não é porque Bolsonaro é um desastre que vou fechar os olhos para os desastres, os erros e os sonhos autocráticos do PT.

Mas na área econômica, com 2 anos de pandemia e o vale-tudo para tentar ganhar a eleição, a gestão foi bastante adequada, embora a tenha criticado em vários aspectos.